
A Constituição Psíquica e a Raiz da Agressividade
A agressividade não é um “defeito” ou uma “falha” no projeto humano; é uma característica fundamental, herdada e intrínseca à nossa constituição. A sua raiz está na tensão irresolúvel entre duas forças primordiais da nossa psique:
- O Medo da Aniquilação (Eros vs. Tânatos): Freud postulou a existência de duas pulsões fundamentais: Eros (a pulsão de vida, que busca unir, criar, preservar) e Tânatos (a pulsão de morte, que busca desunir, destruir, retornar ao inorgânico). A agressividade é a manifestação de Tânatos projetada para o exterior. Em vez de autodestruição, o indivíduo destrói o outro. A raiz existencial aqui é o medo primordial do não-ser, da própria finitude. Para afirmar a minha existência (Eros), eu aniquilo a ameaça (real ou percebida) que o outro representa à minha integridade, aos meus recursos, à minha própria vida. A agressão é, paradoxalmente, um ato a serviço da pulsão de vida, usando as ferramentas da pulsão de morte.
- A Vontade de Potência (Nietzsche): Para além da mera sobrevivência, o ser humano é movido por uma “Vontade de Potência” – um impulso fundamental para expandir, crescer, dominar o ambiente e superar a si mesmo. A agressividade é a ferramenta mais crua e direta para exercer essa vontade. Não se trata apenas de “não morrer”, mas de “viver mais intensamente”, de impor a própria vontade sobre a do outro, de se afirmar como força dominante no mundo. A competição hostil não é apenas pela comida, mas pela hierarquia, pelo status, pelo reconhecimento. Vencer o outro é a prova mais visceral da minha própria potência e valor.
- A Rivalidade Mimética (René Girard): Girard argumenta que o desejo humano é mimético, ou seja, nós desejamos o que o outro deseja. Isso inevitavelmente nos coloca em rivalidade direta com nossos modelos de desejo. Quando dois indivíduos desejam o mesmo objeto (seja um território, um parceiro ou um status social), eles se tornam rivais mortais. A violência surge como o clímax dessa rivalidade, uma tentativa de eliminar o obstáculo ao desejo. A sociedade, para Girard, se funda sobre o sacrifício de um “bode expiatório”, um ato de violência coletiva que canaliza e aplaca temporariamente essa agressividade mimética generalizada.
Esses três pilares – o medo da aniquilação, a vontade de se afirmar e a rivalidade pelo desejo – formam a constituição psíquica e moral que sustenta a agressividade.
Análise Temporal da Agressividade Humana
Vamos agora aplicar essa compreensão à linha do tempo que você propôs.
1. Passado (Pré-Civilizado): A Agressividade como Ferramenta de Adaptação
- Estímulo: Sobrevivência Direta e Seleção. Em um ambiente de escassez brutal e perigos constantes, a agressividade era uma virtude adaptativa. A “clave” que você menciona não era apenas uma arma, mas um instrumento de seleção natural.
- Razão: O indivíduo (ou grupo) mais agressivo, forte e astuto na violência garantia para si:
- Recursos: Alimento, água, abrigo.
- Território: Espaço seguro para o grupo.
- Reprodução: Acesso a parceiros, eliminando competidores.
- Constituição Psíquica em Ação: Aqui, o medo da aniquilação era a força motriz primária. A violência era a resposta mais racional e eficaz a uma ameaça existencial imediata. A Vontade de Potência se manifestava na liderança do mais forte, e a Rivalidade Mimética era resolvida de forma direta e letal. A agressividade era, portanto, racional e sustentável dentro daquele contexto evolutivo. Matar o outro era, de fato, um ato que dotava o sobrevivente de “esperteza e sagacidade” aos olhos da evolução, pois provava sua maior adaptação.
2. Presente (Relativamente Civilizado): A Agressividade Sublimada e Patológica
- Estímulo: Sobrevivência Psicológica e Competição por Status. A civilização (o Estado, as leis, a moral) reprimiu a manifestação física e direta da agressividade. O monopólio da violência pelo Estado tornou a “clave” individual ilegal. No entanto, a raiz existencial não foi extirpada.
- Razão: A agressividade se transformou. Ela foi sublimada e canalizada para outras áreas:
- Competição Econômica: A “guerra” corporativa, a busca implacável por lucro.
- Disputa Política e Ideológica: A polarização, o discurso de ódio, a desumanização do adversário.
- Esportes e Entretenimento: Rituais seguros para a expressão da rivalidade tribal.
- Violência Sistêmica: A agressividade se torna abstrata, manifestando-se no racismo, na desigualdade social, na burocracia que “mata” lentamente.
- Constituição Psíquica em Ação: O medo da aniquilação agora é mais psicológico do que físico: medo de ser irrelevante, de perder o status, de ser “cancelado”. A Vontade de Potência é a força motriz do capitalismo e da busca por poder e influência. A Rivalidade Mimética explode nas redes sociais, onde todos desejam o mesmo ideal de vida, sucesso e reconhecimento, gerando inveja e hostilidade digital.
Nesta fase, a agressividade se torna “irracional e insustentável”, como você bem colocou. Ela é um resquício evolutivo, um “hardware” arcaico rodando em um “software” moderno e complexo. Usamos instintos da savana para navegar em megacidades globais, e o resultado é a neurose, a ansiedade e a violência que explode quando os frágeis mecanismos de controle da civilização falham (guerras, crimes, colapsos sociais).
3. Futuro (Absolutamente Civilizado e Evoluído): A Conjectura da Transcendência ou da Perversão
Aqui, entramos no campo da conjectura, como solicitado. O que acontecerá quando a humanidade se distanciar ainda mais de sua condição pretérita?
- Estímulo: Afirmação Ontológica e Busca por Significado. Em um futuro hipotético de abundância material e segurança física garantidas (pela tecnologia, automação, etc.), a sobrevivência não será mais um problema. O que estimulará a agressividade?
- Conjectura 1: A Transcendência da Agressividade. A humanidade, através da educação, da neurociência, da engenharia genética ou de uma evolução espiritual, finalmente compreende e domina sua raiz agressiva. A Vontade de Potência é completamente desvinculada da dominação do outro e canalizada para a exploração do universo, a criação artística e científica, a superação de limites internos. A agressividade se torna uma peça de museu, um instinto vestigial que pode ser ativado em simulações, mas que não tem mais lugar na interação real. A empatia se torna a força evolutiva dominante.
- Conjectura 2: A Perversão Tecnológica da Agressividade. A raiz existencial permanece, mas as ferramentas se tornam inimaginavelmente poderosas. A “clave” do futuro não será de pedra, mas um algoritmo, um vírus sintético, uma arma de desinformação em massa ou a capacidade de editar o genoma de um rival. A competição hostil se daria em planos virtuais, genéticos ou cognitivos. A Vontade de Potência se manifestaria na busca por se tornar um “pós-humano”, superior aos “humanos básicos”. A agressividade não desapareceria, apenas se tornaria mais sutil, mais fria e potencialmente muito mais devastadora.
- Conjectura 3: O Tédio Existencial como Gatilho. Em um mundo sem luta pela sobrevivência, o tédio e a falta de propósito podem se tornar a nova fonte de conflito. A agressividade poderia ressurgir como uma forma de “sentir algo”, de criar drama e significado em uma existência vazia. A violência se tornaria um esporte extremo, uma forma de arte perversa, uma rebelião contra uma paz e segurança sufocantes.
Conclusão
A perpetuação da concorrência hostil é a sombra inescapável da nossa própria consciência. A mesma inteligência que nos permitiu criar a civilização é a que nos dá a plena noção da nossa finitude, a capacidade de desejar o que o outro tem e a ânsia de deixar uma marca no mundo. A agressividade é a resposta mais antiga e visceral a esses dilemas existenciais.
A sua característica “irracional e insustentável” hoje deriva do descompasso entre a nossa biologia, forjada na urgência da sobrevivência, e a nossa realidade civilizada, que exige cooperação e contenção. O grande drama humano, que se estenderá para o futuro, não é erradicar a agressividade – pois isso talvez signifique erradicar parte do que nos torna humanos –, mas sim compreender sua raiz existencial e aprender a transmutar sua energia destrutiva em força criativa. O desafio é usar a mesma sagacidade que um dia empunhou a clave para, agora, desarmar a nós mesmos.